DE JOÃO A JOÃO: Cinematografias da crônica aberta

Érico Braga Barbosa Lima

         Mesmo àqueles não enraizados num bairro que, atualmente, é servidão para outros mais modernos que abrigam a propalada cultura emergente, talvez seja, ainda, permitido vislumbrar a trajetória de Elsie Lessa, pelos idos de 50, vindo dos "confins do Leblon", acompanhando, ao longo da orla marítima, um inesquecível eclipse do sol. Pois, se apraz ao leitor pegar carona nesse bonde, carro ou avião (as tecnologias, cada qual a seu tempo, sempre renderam-se à metáfora), convirá navegar virtualmente pelo sortido e infinito elenco de imagens criadas pela imaginação dos escritores que 'se deixaram' passear pela cidade, baralhando lembrança e desejo em suas 'viagens'.
        Seguindo um fio geográfico contínuo, nossa personagem exploradora de mundos que coabitam o mesmo espaço urbano, incorporaria a transitoriedade das paisagens, caminhando atemporalmente com um pé sobre o calçadão de pedras portuguesas e o outro, embrenhando-se em rala vegetação de restinga, enchendo-se de areia acronológica, como a de uma ampulheta quebrada. À esquerda, quase chegando ao cais de Ipanema, talvez aviste um casal no bar 'que já vai fechar', ou, quem sabe, possa encontrá-lo na contra-mão, vindo de Copacabana, ele 'de chapéu de palha', ela 'em doce balanço', andando 'pela praia até o Leblon'.
        Se essa personagem se embrenhasse ainda mais nas matas cerradas da condição ficcional da própria criação, traçando uma vereda perpendicular ao mar, deixasse as águas para ir de encontro a outras mais pacatas, contornaria uma Fonte feita de Saudade e saudável fantasia, iria de Ipanema a Botafogo, como quem vai da floresta ao Jardim, chegando a este bairro, que hoje também é passagem turbulenta. Um bairro, no início do século sendo paulatina e endemicamente infectado por colméias de gente, empilhamentos humanos, às vezes erguidos pelos braços de duas únicas pessoas: um português, um João, dono de venda, a outra, uma escrava mulata. Como se debruçado sobre o abismo, um nobre sobrado, "despejando para o terreno do vendeiro as suas nove janelas de peitoril", comprado por "um tal de Miranda, negociante português", dono de lojas de fazendas, porque "já não podia suportar a residência no centro da cidade, e também sua menina, a Zulmirinha, crescia muito pálida e precisava de largueza para enrijar e tomar corpo". Botafogo representava então uma estância de águas minerais. Nosso viandante, lobrigando de seu coupé esse contraste arquitetônico - entre as páginas de um Cortiço -, discerniria uma tênue ligação: o cruzamento, num tablado de esgrimistas, dos olhares furiosos de Miranda e Romão.
        Adiante, em trecho mais recatado do bairro, adivinharia, através das janelas de um pequeno edifício, uma cena familiar: "um menino e uma menina. Ela distrai-se a olhar para o canário". Mas, concentrando firmemente a vista na cena, divisaria, desenhada nas cortinas do quarto de dormir, a silhueta do "Senhor Rodrigues", copo de água de flor de laranjeira em uma das mãos, e a outra, mais nervosa, folheando um dicionário, à cata do verbete Plebiscito.
        Rolando sobre as ruas descalças e enlameadas, o coupé toma o caminho da praia e estaciona em frente ao prédio de Braga Lopes, que, "sentado numa deliciosa chaise-longue, brunia as unhas e contemplava, pela janela do gabinete, o Pão de Açúcar", enquanto madame Braga Lopes toma assento em um coupé e despacha-se em direção à cidade, por uma "questão de honra". O marido, a indagar-se aonde ela ia àquela hora, à cata de quinhentos mil réis, "acompanha com a vista o trajeto do carro em quase toda a curva da praia de Botafogo, até que" o vê "desaparecer na rua Marquês de Abrantes".
        Como 'penetra' das imagens de uma cidade, percorrida por diversos olhares e estilos, criamos, de ponto em ponto, um trajeto geográfico que conecte, via coupé, a honrada casa de Braga Lopes ao sórdido destino da esposa: "um casarão de dois andares", no centro da cidade. Deixada no largo de São Francisco, "ela toma a pé a rua do Rosário, atravessa a da Quitanda, dobra a Alfândega, e, sobressaltada, palpitante, com muito medo de que a vissem, entra precipitadamente" naquele "casarão de dois andares"... Mas lá não entra, pois a personagem já não pertence a Arthur de Azevedo e seus "contos fora de moda", nem a Aluísio naturalista e seu Cortiço, nem a Vinícius, às canções mais populares ou a Lessa. Pertence à cidade e ao seu imaginário; pertence a si mesma, e, ao dispor do particular desejo, talvez prefira caminhar por uma rua qualquer de "alma encantada", sejam seus encantos 'alourados' ou obscenos.
        Transformada pelo caminho que percorre, essa mulher, agora em pressa moderna e psicologia adandinada, transforma-se, adapta-se como o animal que escapa à extinção. É a necessidade de adequar-se às escalas, ajustar finamente o instrumento de aferição, regular a percepção ao choque inevitável da descoberta. Somente a alguns, por sorte e por desejo, é revelado o roteiro que a sensibilidade deve seguir, pois para andar nessas ruas é preciso ver-lhes a alma, desvelar-lhes a urbana personalidade, desentranhar-lhes os superpostos Egitos, adivinhando-lhes a trama; fazer-se teia e confundir-se com a cidade, em seus mistérios, em seu próprio nome. Para andar nessas ruas, que só à noite se nos revelam em sua essência, não convém, todavia, ser uma dama; mais calha ser baixo, gordo, meio mulato, e, como as ruas que de dia vestem a máscara de rios claros de gente apressada (e à noite são misteriosas como os segredos que escondemos), convém ser como elas para compreendê-las: paradoxal, ambíguo, homem e mulher, dândi e intelectual, temeroso e ao mesmo tempo ousado, dúbio como a profusão de ruas que percorrem os homens e como os homens a percorrê-las... É preciso amalgamar-se a elas, ser um homem "no deserto de homens" que nos pinta modernamente Baudelaire, ou um homem da multidão, visível somente a um convalescente ou a uma criança de olhar extático1 ; um João qualquer, um João qualquer da cidade, ou um Joe, um Godofredo, um Alencar romântico às avessas, quase nietszcheano, um José ou um Antônio ou um José, ou um José-Antônio-José, tal uma urbana trindade (pseudônimos a pleitearem heteronímia)... E andar... Andar de volta à Cinelândia, onde, ironicamente, dentro de um Táxi (que bem poderia ter saído da coluna de Mário de Andrade), jaz um andarilho: Paulo Barreto, mais uma personagem lavrada em cartório e em pia de batismo (um João biográfico), fictio (Iser: 1997) condenado à textualidade e a uma posteridade ambígua. , ironicamente, dentro de um Táxi (que bem poderia ter saído da coluna de Mário de Andrade), jaz um andarilho: Paulo Barreto, mais uma personagem lavrada em cartório e em pia de batismo (um João biográfico), fictio (Iser: 1997) condenado à textualidade e a uma posteridade ambígua.
        Brás Cubas da lira moderna, talvez esse Paulo revisse sua vida como um filme no seu cinematógrafo mental. Com sua câmera caleidoscópica, administrada por uma personalidade que nunca se revelou senão em sua multifacetação (artista excêntrico a esconder-se atrás de máscaras), projetaria na tela de seu texto o "romance mental, de um homem que não é de todo desinteressante" (agora Godofredo), talvez fotografias de "homens pálidos de um pálido embaciado como se lhes tivessem pregado à epiderme um papel amarelo" ou, ainda, a futilidade da jeunesse dorée2. Se o mundo, então, parece ser uma mascarada de grandes proporções, que somente descansa quando é carnaval3, coma a assunção peremptória das inevitáveis máscaras, talvez sobre ele seja apenas possível especular na medida em que o verbo renda-se ao adjetivo. Partindo desse princípio, ser um flâneur-repórter (muito distinto do babaud), para Paulo, é revelar, no filme sensível da memória, o próprio trajeto, sopesando as pegadas a cada metro 'curtido'; no registro do movimento da cidade onde todo mundo é João, é, ainda, o exercício de imaginar o Rio de um só João, cidade a qual pertencia e que, ao mesmo tempo, em lúcido egocentrismo, a toma sob tutela, como um imperador visionário, em plena república, num federalismo cultural.
        Um nome no qual fixar o olho do furacão, o centro desse carrossel de espelhos: Paulo Barreto, a já referida personagem biográfica. É necessário cercá-la e, se possível, descrever-lhe o movimento. A exemplo do experimento que encabeça este ensaio, uma deambulação à moda de Helena Buesco, uma meta-pintura de atitude, pelas 'imagens' literárias várias que compõem o álbum da cidade, cumpre percorrer a geografia de uma personalidade que assume em seus contornos a topografia da urbe, deformando-se e conformando-se a todo custo, nem que para isso seja necessário impor fronteiras entre as nuanças de seu espírito poético, numa lírica esquizofrenia.
        Pois, se a certas almas é suficiente o conforto, a outras é necessária a inquietude. Se "partir é o único verbo" possível a quem é abençoado com le gôut du travestissement et du masque, la haine du domicile et la passion du voyage - como define o autor de Une charogne -, o palco precioso, o manancial precípuo, é a cidade, seu processo de diversidade, e o posterior mergulho 'desbussolado' no turbilhão transformativo que quase sempre a caracteriza. Esses espíritos 'extra-ordinários' são movidos pela paixão pelas ruas, "ora a confeitaria, ora o botequim, mas sempre a cidade e a rua; nunca a casa" (Antelo, 1989: 15), atiçando sua curiosidade o que transforma e o que é transformado.
        Condição fertilíssima oferecida pela Belle Époque carioca a Paulo Barrreto da qual, se foi "fixando em instantâneos a influenciada classe privilegiada em sua mundanidade" (Perricone, 1996: 85), numa simetria invertida, registrou o que era tido como mundano em toda a sua condição de cultura. Freqüentador da cena e da obscena, como sua alma gêmea não menos ficcional: a figura de "Coração dos Outros"4, vagando entre salões e cismando triste a mirar os telhados de casas pobres no subúrbio, aboletado em sua janela doméstica.
        Numa cidade que, segundo Beatriz Resende, nunca se sentiu como colônia - pois se era capital de uma colônia, enxergava-se como "capital de um reino europeu" (Resende, 1994: 38)-, impunha-se estar à altura de seus supostos pares, tornando-se cosmopolita: "a maior ambição que tem o Rio de Janeiro no início do século" (1994: 42). Pereira Passos, então prefeito, deseja civilizar o Rio de Janeiro - metonímia de Brasil -, que, além de centro administrativo, comercial, financeiro e industrial, era o "teatro da vida mundana", que se embeleza "sob o patrocínio do poder, das elites aburguesadas" (Gomes, 1994: 16). Importa imitar a metrópole, refleti-la; daí a mitologia da Avenida, "um emblema da construção do cenário do novo". (1994: 20) A imagem que se quer ver pelo apagamento da fealdade5, pois, "para o brasileiro ultra-moderno, o Brasil só existe depois da Avenida Central, e da Beira-Mar"6. Esta observação iria se consolidar muitos anos depois, com Nelson Rodrigues afirmando-nos que, depois do Méier, o brasileiro já tem saudades do Brasil.
        Assim como a cidade do Rio traveste-se de Paris, Paulo Barreto traveste-se de dândi, flâneur dimensionado em repórter, o nome João do Rio, adotado no artigo "O Brasil Lê", tendo possivelmente sua origem associada a uma influência francesa: o nome Jean de Paris, utilizado pelo jornalista Napoleon-Adrien Marx, "o rosto vestindo a máscara calcada no figurino francês" (Gomes, 1996: 45). Um Rio Madame-Satã (como seu (d)escritor): o malandro adornado com belezas feminis (a natureza - o traje). O Rio, talvez mulher, que se deseja da imagem da 'Loura', compondo o híbrido hino: "Riô, ces't une blonde" (como ainda hoje se observa na oxigenação do cabelo das meninas). A mulher a ser imitada, e esse palco de metamorfoses, "figurino de uma mistificação do moderno", que são a cidade e seus cenários - as ruas -, "convoca o artista para representar travestido de jornalista" (1996: 49). Nas palavras do próprio escritor-jornalista (expressão que Drummond preferia a jornalista-escritor): "tudo no mundo é cada vez mais figurino. O figurino é a obsessão contemporânea. Estamos na época do artificialismo, das casas pintadas, das almas pintadas".
        Servindo-se da mesmíssima maquillage, Paulo, el todoquisque, identifica-se "com o cosmopolitismo destes tempos eufóricos, decodificando a linguagem e as imagens da nova" (cidade), como um "observador curioso, quando não preciso, do bas-fond carioca, e das altas rodas da República, convivendo indistinta e democraticamente nessas duas faces da cidade urbe", revelando tanto o "aprazível", quanto o "invisível" - a cena e a obscena -, tanto descrições do restaurante Paris (hoje, os Hard Rock Cafés da vida), quanto "aspectos da miséria e das manifestações da cultura popular não contemplados pelas reformas dos donos da República" (Perricone, 1996: 56). Se, como define Beatriz Resende (1994: 55), a "cidade una não é a cidade única, sem diferenças, bem pelo contrário, é a cidade plural, a cidade das diferenças", em nome de um João qualquer desse Rio, Paulo Barreto a unifica.
        Se, como quer Godofredo Alencar, "na vida, só as idéias e as imagens contam", sendo o resto, "realização", esta ocorre, consoante Renato Gomes, através do "gênero que, por suas características, está mais adequado à fixação do efêmero: a crônica moderna, filha da cidade, veiculada pela imprensa, presa à contingência, ao próximo, que utiliza a língua da cidade e se submete às exigências do tempo; gênero, portanto, que se atrela à vida urbana" (Gomes, 1994: 39), cujo estilo cúmplice, aliciador de simpatias, mimetizamos ao 'perambular', nas primeiras páginas, por textos que a representam ou que são a ela dedicados.
        A imagem mental, o romance mental, a interpretação da realidade momentânea; o homem que passeia, estrutura-se no vário, e, com isso, edifica o que vê. Paulo Barreto constrói diferentes alter egos para oferecer diferentes paisagens, servindo à captação de uma cidade fragmentária. Se esta é singular (arranjo característico das culturas que a compõem), também o é o autor, capaz de envergar múltiplas personalidades (câmeras, ângulos singulares, filmes sensíveis - a sensibilidade química da película - facetas sensíveis a cada fenômeno - imagem) para captar as diferenciadas manifestações da cidade. São câmeras diferentes a percorrê-la, mas com a predominância de uma máscara específica: a do Joe Cinematógrafo (um cameraman). É através do livro de mesmo nome, no qual confessa a consciência de seu artifício, publicado como coletânea das crônicas dominicais da Gazeta de Notícias, que o autor lança mão da metáfora fundamental da literatura sob a influência da modernidade: o cinematógrafo de letras. Novo estilo ao qual se adapta a velha linguagem literária, a espremer-se em prol da máxima eficiência exigida pelo progresso... (ou para nele não submergir?) O estilo de que se utiliza o cronista Paulo Barreto dá mostras da própria ambigüidade que o caracteriza. É curioso notar que a crônica moderna lança mão das próprias mudanças que os novos tempos impõem à escrita, para criticar esses mesmos efeitos, pois invoca a velocidade da linguagem para salvar o momento estático; a mudança de um padrão de escritura para resguardar a lembrança e a padronização de um estilo destinado ao registro do múltiplo. lembrança e a padronização de um estilo destinado ao registro do múltiplo.
        Diversidade florescente da urbe, que atesta identidade, mas que se esfacela com a preponderância do útil, do prático, do eficiente, da implantação do belo como padrão. Em Cinematógrafo, o cronista atesta a demolição do vário, ressaltando "serem o característico, o local, o típico, o exótico de cada urbe a legitimação da identidade que o cosmopolitismo veio destruir". A idealização fetichista de uma nova ordem, que homogeneíza e desidentifica culturas: o "progresso e seus correlatos nivelam cidades" (Gomes, 1994: 13); torna-as objetivas. O que o cronista moderno tenta capturar, ao contrário do cronista colonial, é a subjetividade; é o andar sem destino pelas ruas assimétricas da percepção. De acordo com Margarida de Souza Neves, o "conjunto das crônicas de um determinado escritor é produzido ao modo de um mosaico, cujo autor não tivesse a idéia exata do sentido de seu produto final (...) A escolha de seus temas é supostamente arbitrária e a liberdade preside sua construção. Sua forma é, por definição, caleidoscópica, fragmentária e eminentemente subjetiva" (Resende, 1994: 20). A crônica tem, por temática, o próprio tempo, fazendo dele "sua matéria-prima", registrando-o em duas instâncias: no seu tempo particular e naquele, segundo Saramago, "em que mais alargadamente vive". Se a história constrói a memória nacional, a crônica constrói a da cidade: "a tarefa mais eminente da crônica é, sem dúvida, a memória da cidade" (1994: 23), e a memória daqueles que nela vivem. Consoante Beatriz Resende, os cronistas eram "companheiros do dia-a-dia (...) cúmplices de nossas revoltas" (1994: 36). Por isso, talvez (e necessariamente), escrita numa linguagem que, afirma Machado, adula o leitor; numa escrita "descontraída e despojada de artificialismos (...) que induz a uma intimidade (...) a coragem que uma reflexão mais demorada talvez inibisse". Resende, os cronistas eram "companheiros do dia-a-dia (...) cúmplices de nossas revoltas" (1994: 36). Por isso, talvez (e necessariamente), escrita numa linguagem que, afirma Machado, adula o leitor; numa escrita "descontraída e despojada de artificialismos (...) que induz a uma intimidade (...) a coragem que uma reflexão mais demorada talvez inibisse7".
        Acatada a sugestão de Bachelard de que "a opinião pensa mal; traduz impressões em conceitos" (1996) - é a fala sem competência, é o discurso sem escola, o discurso sem curso, sem história de reflexões -, mesmo assim, há que se considerar que a crônica não tem por finalidade fundamentar um raciocínio, mas expressar um sentimento. Por mais apressada que seja a consideração feita, cumpre seu objetivo de consigná-la e a seu caráter puramente subjetivo e impressionista, sendo fiel a seu destino: servir de registro, ainda que eivado de impetuosidade e eventualmente precipitado. Não se pede ao cronista imparcialidade ou reflexão acurada, mas a imprescindibilidade da narração do acontecido, através de seu assentamento particular.
        A crônica tem tendências memorialistas. Cabe ao cronista, não a guarda do espaço da cidade, mas do espaço da memória dessa cidade em suas transformações e injustiças. O exercício da crônica com o usual entusiasmo dever-se-ia à necessidade impreterível do registro da transformação? Assim como João do Rio despreza a classe média (ou o 'burguês-níquel'?), por não ter o que contar sobre ele, preferindo as classes altas ou a ralé mais rasteira, talvez a crônica despreze a memória que não seja passagem. Segundo Raul Antello, "a crônica, coletiva e aberta, é o gênero escolhido para fixar o semovente. Ela obedece aos panoramas, às fisiologias (...) É, portanto, o gênero híbrido das pontes e das passagens" (Antello,1989: 13), como se fosse seu destino correr atrás do movimento (mesmo que efetue essa tentativa através da exposição de momentos estáticos sucessivos). Além disso, há o aspecto receptivo: o leitor é criado pelo sistema junto ao bem de consumo que se produz. É a instituição imaginária nascida da mescla de acaso e necessidade:

 

uma cultura moderna e de massas rapidamente escolarizadas, em função das necessidades comerciais e administrativas das metrópoles, produz um novo tipo de leitor (...) tudo pautado pela brevidade e a ilustração do cotidiano, erigido agora à categoria fulgurante da reflexão. Esta coleção de instantâneos situa seu horizonte no coletivo8 daí que o aspecto multitudinário das ruas e a miscelânea da crônica sejam rigorosamente equivalentes. (Antello, 1989: 13).

 

        Essa escrita ligeira prestar-se-ia à representação de uma percepção fragmentária do tempo, capaz, segundo Flora Sussekind, "de abrigar diferentes aproximações de um presente contínuo semelhante àquele que dimensiona a escrita jornalística (...) uma espécie de forma literária "de passagem", moldada no jornal" (Süssekind, 1992: 99). Portanto, é assaz pertinente lançar mão da expressão "cidade cinemática" (Gomes, 1994); mais apropriada do que dinâmica, visto ser a dinâmica o estudo do movimento, levando-se em consideração as causas (definição mecânica), quando o que se vê no estudo do cronismo ou do flâneur é o aleatório, é o registro puro e simples do 'movimento'. Associado à 'leveza' que interessa ao consumo, o cronista e seus escritos "corre como as abelhas (...) só leva o bem entre risos (...) e não guarda a agonia, que talvez o esperasse, se se quisesse demorar para ir ao âmago das coisas".
        Necessidade que Paulo Barreto (agora 'Joe Cinematógrafo') identifica como uma dolorosa moléstia:

 

- a pressa de acabar (...) Não há mais livros definitivos, quadros destinados a não morrer (...) Trabalha-se muito mais, pensa-se muito mais, ama-se mesmo muito mais, apenas sem fazer a digestão e sem ter tempo de a fazer (...) Dar tempo ao tempo é uma frase feita cujo sentido a sociedade perdeu integralmente. Já nada se faz com tempo. Agora faz-se tudo por falta de tempo. (Martins, 1971).

 

         O que nos remete irremediavelmente ao Admirável Mundo Novo, de Huxley, e aos aforismos da nova sociedade: "Acabar é melhor que remendar (...) Quanto mais se remenda, menos se enriquece (...) Não se pode consumir muito se se sentar tranqüilamente e ficar lendo livros". (Huxley, 1965: 79). É o ingerir sem digerir, por influência do meio; da velocidade. A cidade, que se afirma como moderna quando, segundo Susan Sontag, "uma de suas principais atividades passa a ser a produção e o consumo de imagens"9.
        A Crônica também funciona como registro quando regula a passagem do fluido temporal (memorialista). A modernização apregoa a velocidade em detrimento do tempo. Dessa forma, ao escoar-se, o tempo tornava-se palpável talvez porque escasso, como objeto de uso cotidiano, só detectado quando parco. A escrita (estilo) já não poderia depender de si mesma, como valor, para subsistir, pois agora tem como seu maior crítico, Cronos, que devora seus próprios escritos. Se o tempo do jornalista do momento (e daquele que escreve para quem tem pressa) é sorvido pela garganta onívora da modernidade consumista, o remédio é escrever, escrever, escrever sem descanso atabalhoadamente, fazer o grande poema épico da semana, sem a demora de um instante. E fazê-lo em escrita leve; se demasiado pesada, o momento a ultrapassa, e no bonde do momento, vão-se os leitores. Linguagem e escritura, dotados da mesma inércia, compondo, concomitantes, não o registro que regula o tempo, o encarcera, mas o que o envolve. Mais do que uma nova escrita, talvez fosse necessária uma nova linguagem, um novo código, quase volátil, como a de que se utiliza a personagem de Gog10 , a conceber esculturas momentâneas de fumaça densa e espessa. No mesmo padrão de pensamento, João do Rio irá lançar mão das metáforas que nos cedem as inovações tecnológicas, vendo a vida da cidade do Rio de Janeiro como um filme em altíssima velocidade:

 

A crônica evolui para a cinematografia. (...) Com o delírio apressado de todos nós, é agora cinematográfica - um cinematógrafo de letras, o romance da vida do operador no labirinto dos fatos, da vida alheia e da fantasia -, mas romance em que o operador é personagem secundário arrastado na torrente dos acontecimentos . Esta é sua feição, o desdobramento das fitas, que explicam tudo sem reflexões (...).11

 

        Como se vê, a base para a analogia com a crônica é a tecnologia vista por um prisma evolutivo que enfatiza a mudança, identificando-a ao progresso, e este ao futuro. Aproximando máquina e imaginação, Paulo Barreto anela ser um esteta do seu tempo, usando o instrumental apropriado, o cinematógrafo, que é "d'outro dia, é extra-moderno, sendo resultado de uma resultante de um resultado científico moderno"12 . É a consciência da necessidade de se utilizar um instrumental novo para medir-se um novo tempo, e uma estética mais adequada à mensuração de um fenômeno contemporâneo.
        Entretanto, há de se explicitar os equívocos em torno de uma arte emergente - as errôneas concepções de uma técnica que, por ser ainda incipiente, não era ainda vista como linguagem. De simples reprodução de imagens à arte criativa percorre-se longa estrada: "passa-se de uma compreensão sobretudo documental do aparelho à noção de que, por trás da câmera, havia o olhar do seu operador, fixando "impressões pessoais" na fita, e, já na década de 20, à compreensão de que o cinematógrafo envolveria uma linguagem própria, de que não apenas reproduziria imagens, mas as produziria de acordo com uma sintaxe e uma lógica peculiares" (Süssekind, 1992: 136). Após a detecção de uma possibilidade de linguagem cinematográfica "é que se tornam mais freqüentes as reelaborações e apropriações críticas da técnica" (1992: 136). Como exemplo de entendimento da filmografia como tábula rasa, temos o depoimento de Arthur Azevedo, que trata o cinematógrafo como um "admirável aparelho que poderia ser aplicado à arte do teatro"13, sendo tomado apenas como um aparelho - "um reprodutor de realidades... sem expressão artística (...) como meio neutro, transparência capaz de, camaleonicamente, assumir, inclusive, aparência de arte. Porque o medium não parecia ser percebido na sua materialidade própria ou enquanto dotado de nexo e linguagem outros que não a função de tábula rasa..." (1992: 137).
        Já João do Rio parece perceber que existe a dependência do homem que filma, da 'perspectiva do bom momento', da escolha da cena, da tomada:

 

se o cronista percebe que a técnica não 'tão neutra e que depende diretamente do olhar do operador, isso não o leva a se deter demasiado num possível "idioma cinematográfico"), mas sim na figura mesma do operador. A fita, se não mais tábula rasa para vistas diversas, vira, de repente, uma espécie de diário em movimento de impressões pessoais variadas, de auto-retrato de um temperamento. (Sussekind, 1992: 138)

 

        Como um 'romance da vida do narrador', para João do Rio, o fenômeno cinematográfico traria à realidade o ideal de sentido literário absoluto de Hirsch, adequado à imagem (é a crença na imagem absoluta, na fotografia definitiva). O aparelho é como o mediador (de que nos fala Flora), que, antes, é o autor, que se desmancha tanto como personagem como quanto narrador, o personagem secundário, o narrador secundário, que assume essa postura como um mediador entre o acontecimento e o fato narrado, responsável pela adequação do advento do cinematógrafo a uma linguagem, meio de expressão, que já lhe era particular. Não é o caso de influência de uma técnica nova, senão a conformação de uma metáfora. A crônica em si teve como condição necessária a seu florescimento, o advento da modernidade de um modo geral: velocidade, comunicabilidade, leveza, e, quando esta se aproxima do cinema, não é senão sob a condição inequívoca de absoluta precedência: "Nem sempre onde se tematizam diretamente essas mudanças de horizonte e de sensibilidade o diálogo entre literatura e técnica sugere transformações significativas nos procedimentos propriamente literários" (Süssekind, 1992: 89). Destaque-se: há menos influência cinematográfica do que necessidade de velocidade de veiculação de informação; a velocidade, a rapidez, que exercem maior influência sobre os meios de expressão do que a técnica propriamente dita, verificando-se, ainda, que, pelo menos no início do século, é o jornal (premido pelas circunstâncias) que irá 'imprimir' a linguagem dinâmica, mais do que o cinema ou outros veículos de expressão predominantemente 'icônicos'. Há que se perceber que é a consciência da modernidade, da tecnologia que acarreta a emergência do novo estilo, de um modo geral que irá influenciar as formas de expressão, torneando as demais linguagens à sua necessidade. Não é senão com o caráter ainda de curiosidade pelo que há de novo, de moderno, que o cinema será introduzido no meio social. A sugestão de um paralelismo com a crônica ou a literatura, não deve implicar uma automática aceitação de mútua interferência ou influência. outros veículos de expressão predominantemente ‘icônicos’. Há que se perceber que é a consciência da modernidade, da tecnologia que acarreta a emergência do novo estilo, de um modo geral que irá influenciar as formas de expressão, torneando as demais linguagens à sua necessidade. Não é senão com o caráter ainda de curiosidade pelo que há de novo, de moderno, que o cinema será introduzido no meio social. A sugestão de um paralelismo com a crônica ou a literatura, não deve implicar uma automática aceitação de mútua interferência ou influência.
        A situação modifica-se, quando, através das conquistas técnicas e do domínio da arte técnica, a filmografia se estabelece como linguagem, já é possível pensar em influência. Se Lumière "apenas filmava o objeto, o documentava", o interesse pelo cinema "começou com a inserção de um modelo narrativo no filme, e melhorou muito quando começaram a investigar suas possibilidades manipulativas" (Johnson: 9), tal como ocorreu com a introdução de movimentos da câmera.
        Se por um lado, os avanços técnicos começavam a suprir, com seus elementos essenciais e constituintes, a linguagem que aos poucos surgia, suas limitações iriam sugerir, por seu turno, o entendimento da filmografia como um meio autônomo. Pois se no início o cinema embebeu-se da criação literária (mais exatamente da narrativa) para a realização dos filmes, foi a partir da percepção de que o que se estava a fazer era, na verdade, uma recriação, que se percebeu a distância semiótica existente. Apoiado nesse princípio, Randall Johnson (1982:5) busca embasamento em Jakobson para considerar qualquer informação estética "estruturada ambiguamente em termos do sistema de convenções ou código ao qual pertence". Essa 'fragilidade' característica da informação estética (na terminologia de Max Bense) seria a responsável pela impossibilidade de tradução 'perfeita'. Estendida tal concepção à semiótica, a possibilidade de transmitir a mesma mensagem através de diferentes sistemas de significação conteria o princípio absurdo de que "valores significados existem independentemente do significante expressivo que lhes dá vida", existindo os valores expressos numa obra "apenas como uma função da forma que lhes deu sentido" (Johnson, 1982: 8). É a partir das dificuldades de tradução de literatura em filme que irá evidenciar-se o dioptro semiótico. As diferenças essenciais entre a comunicação verbal e a comunicação visual, ou, segundo Bluestone, "entre uma imagem mental e uma imagem visual, entre a apreensão conceitual e a percepção direta, entre um meio essencialmente simbólico e um meio que trabalha com a realidade física", iriam, de outro modo, também isolar um fator comum até então não observado (como vimos em A. Azevedo e J do Rio): que a imagem cinematográfica também é uma representação, é ilusão da realidade, posto que "a imagem é uma representação analógica, contínua, icônica da realidade. A linguagem verbal é uma representação não-analógica, descontínua e basicamente simbólica da realidade" (Johnson, 1982: 12), para seguirmos a terminologia de Pierce. Entretanto, para Johnson (1982: 33), a "tentativa de revelar o texto do filme através da linguagem resulta numa situação paradoxal, porque a linguagem não pode captar a imagem em movimento"; tal concepção de literatura iremos questionar ao analisarmos o romance pós-moderno. direta, entre um meio essencialmente simbólico e um meio que trabalha com a realidade física", iriam, de outro modo, também isolar um fator comum até então não observado (como vimos em A. Azevedo e J do Rio): que a imagem cinematográfica também é uma representação, é ilusão da realidade, posto que "a imagem é uma representação analógica, contínua, icônica da realidade. A linguagem verbal é uma representação não-analógica, descontínua e basicamente simbólica da realidade" (Johnson, 1982: 12), para seguirmos a terminologia de Pierce. Entretanto, para Johnson (1982: 33), a "tentativa de revelar o texto do filme através da linguagem resulta numa situação paradoxal, porque a linguagem não pode captar a imagem em movimento"; tal concepção de literatura iremos questionar ao analisarmos o romance pós-moderno.
        Cumpre analisar um novo tempo, (distinto daquele que parece imóvel como fotos em um álbum) e um novo Tempo de análise, partindo da literatura que faz do tempo não sua matéria-prima, mas algo indefinido. Num complexo social em que a imagem (numa concepção genérica) impera e a sua torrente torna-se incontrolável, o tempo não é mais palpável, sobrando a velocidade como elemento a ser representado. Noll surge como representativo desse tempo, de uma imagem-movimento, a que faz referência Deleuze, e que o cinema parece capturar com maior precisão, fazendo do movimento - e não do tempo - sua matéria prima, a imagem em transformação. A aproximação de Noll com o cinema dá-se não só por influência (como confessa em entrevista), mas por coincidência de objetos: o movimento que ambos tentam capt(ur)ar. Nosso objetivo é perceber, nas obras em pauta e através da concepção de Deleuze da percepção bergsoniana de 'Tempo' e 'Duração', a 'imagem como uma contingência do movimento'. Se o Cinema desponta como a crônica - invenções da velocidade - em caminhos paralelos que posteriormente se imbricam (como João e a cidade), e afirmam-se como linguagem e forma literária, respectivamente, influenciadas e formatadas por um novo regime gerenciador de imagens que revolve - mais que revoluciona - as técnicas artísticas (artes) de um modo geral (o dilúvio informativo e imagético de que nos fala Calvino), tentaremos investir na hipótese da existência de um "cinema mental como modo de funcionamento trans-histórico da mente-humana" (Barbieri, 1996: 71), como propõe Calvino. Tal postulado sugeriria "a figura de um cinema mental anterior à invenção do cinema remete a imagem visual à sua verdadeira fonte: a imaginação" (1996: 75).rior à invenção do cinema remete a imagem visual à sua verdadeira fonte: a imaginação" (1996: 75).
        Se, por um lado, a crônica pretendia registrar, mais do que a imagem, o movimento, através do fotograma da transformação de estádios estratificados, e o cinema explicitava esse movimento pela própria técnica que caracteriza sua linguagem, para o pós-moderno, entretanto, um novo estádio de expressão se fazia necessário para veicular uma nova impressão de realidade. Amparados em Deleuze, procuraremos, para além da 'imagem-movimento', a 'imagem-tempo' que mais se afina com a imagem mental que o pós-moderno busca. Analisando o neo-realismo, Deleuze revela "a necessidade de critérios formais estéticos" para a representação de uma nova forma de realidade, que "se supõe ser dispersiva, elíptica, errante ou oscilante, operando por blocos, com ligações deliberadamente fracas e acontecimentos flutuantes" (Deleuze, 1985: 9). Planetária, errante, tanto a trajetória da personagem quanto da linguagem que descreve os acontecimentos que a envolvem (como veremos na literatura de Noll) o "Real" não era mais representado ou reproduzido, mas 'visado': o neo-realismo visava um real, sempre ambíguo, a ser decifrado (...) iinventava, pois, um novo tipo de imagem, que Bazin propunha chamar de imagem-fato. Baseado em filmes como "Ladrões de Bicicleta", de De Sica, "Obsessão" de Visconti, e "Alemanha Ano Zero", de Rossellini, Bazin afirmava que esta concepção "produzia um 'mais de realidade', formal ou material" (1985: 10). A partir daí, Deleuze pretende identificar a imagem não mais como representação, mas como sugestão para uma representação mental, em termos do pensamento:

 

Se o conjunto das imagens-movimento, percepções, ações e afecções, sofria tal transtorno, não seria, isto sim, porque irrompia um elemento novo, o qual impediria a percepção de se prolongar em ação, para assim relacioná-la com o pensamento, e que, pouco a pouco, subordinaria a imagem às exigências de novos signos, que a levassem para além do movimento? (Deleuze, 1985: 10).

 

        É a partir dessa tentativa de expressar, via linguagem, o que ela não pode expressar (por desgaste ou por insuficiência) que irão florescer os 'paradoxos do pós-moderno' na literatura, como assinala Nícia Villaça, ou acentuar-se-á o hibridismo literário, pelo esgotamento lingüístico, como propõe Therezinha Barbieri.
        Tomando como referência a prosa de João Gilberto Noll, segundo Therezinha Barbieri (1996: 55), "a pós modernidade é a época do fim dos grandes mitos, dos grandes modelos cosmológicos para explicar o mundo". É a crise das utopias, crise das vanguardas. Hotel Atlântico, de Noll, por exemplo, contém a narrativa típica da atmosfera literária dos 80: "aspectos de desesperança, desintegração e desilusão, sendo possível associar sua narrativa ao documentário", e entendê-lo como coleção de documentos, justaposição, imagens de fotos, de pinturas de quadros, a colagem de fragmentos 'cinematográficos'. A autora destaca a 'errância', o 'vôo cego', a trajetória indeterminada que definiríamos como uma escrita planetária: aquela da qual tentamos precisar a órbita, aquela cujo vôo não está em consonância com as estrelas do firmamento literário. Tudo narrado numa escrita antilírica, como nas cenas de sexo; o choque das carnes é quase metálico, o tirar as roupas é ofício necessário à burocracia do ato, somente sexo, uma rendição à fatalidade dos tropismos; a intuição de um mundo erigido por imagens falidas; a falência do significado (íntimo) associada à falência da linguagem (incapacidade expressiva), pela descolorização, pela banalização do ato e do fato.
        Diferente do realismo (literário), a escrita pós-moderna de Noll ganha dimensão cinematográfica pela ausência de detalhes, de descritividade, situação em que a linguagem submerge, deixando sobrelevar a imagem virtual do próprio espectador (leitor). A intenção de não evidenciar a linguagem - gerada por um 'vazio de significâncias' contemporâneo -, posta como despercebida, não a suprime, nem a submerge; torna-a mais 'eficiente', se tomada na acepção de que a linguagem é feita para 'comunicar'. Se a descrição detalhista pode pôr em evidência a fala e, mais, quem fala, a linguagem cortada, por sua vez, apenas dispõem coordenadas; diferente do antigo realismo que, conforme Deleuze (1985: 13), exploravam uma 'realidade funcional'. Assim como na expressividade pós-moderna de Noll, no neo-realismo da filmografia italiana:

 

os objetos e os meios conquistam uma realidade material autônoma que os faz valerem por si mesmos. É preciso, portanto, que não somente o espectador, mas também os protagonistas invistam os meios e os objetos pelo olhar, que vejam e ouçam as coisas e as pessoas, para que a ação ou a paixão nasçam (...) a situação não se prolonga diretamente em ação: não é mais sensório motora, como no realismo, mas, antes, ótica e sonora, investida de sentidos, antes de a ação se formar (...) é, antes, uma relação onírica, por intermédio dos órgãos dos sentidos, libertos. Dir-se-ia que a ação flutua na situação, mais do que a arremata ou encerra (1985:13).

 

        Esse esvaziamento de significância também pode ser explicitado pelo autor através da repetição quase 'pornográfica' da imagem banal, pela saturação das formas, pela 'clicherização' das imagens, pela sensação da repetição; o recalque da linguagem óbvia, pelo desgaste da linguagem e esvaziamento de significados. É emblemático o conto de Noll, intitulado Marily no Inferno, no qual o autor "parece escrever com o olhar voltado para o cinema, palavra e imagem, rearticulando-se a partir da fonte, a imaginação criadora" (Barbieri, 1996: 76). A imaginação funciona tal uma gerenciadora de imagens, procedendo o autor a uma colagem de fragmentos de memória, flashes de anúncios, out-doors, etc (Barbieri, 1996: 60)... Os 'cortes' da narrativa também podem ser interpretados como uma linguagem contundente, mais adequada à narrativa de perversões violentas14. Uma prosa ficcional iconoclástica, construindo-se "sobre os escombros de um imaginário cinematográfico por ele mesmo hiperbolicamente deformado com visada crítico-satírica ou fazendo de uma parábola cinematográfica o simulacro de deformação alienante" (Barbieri, 1996: 77).
        Pretendemos entrever um 'estado' de linguagem entendida como 'cinematográfica', anterior ao filme e à escrita literária, que, nascida de uma situação exterior de observação - imagens rápidas dos ajuntamentos humanos, sucessividades de acontecimentos -, encontra seu veículo tanto na forma escrita, quanto na filmográfica. Esta última tomará para si a imagem e nela depositará seu nome, dada a sua capacidade técnica, estética, muito mais eficiente de torná-la 'viva'. No caminho inverso, encontramos potencialidades cinematográficas tidas hoje em dia como exclusivamente filmográficas, nas frestas dos discurso literários, impedidas de uma plena realização pelas limitacões naturais da linguagem a que são submetidas. Como esclarece Therezinha Barbieri: "entre o olhar enfeitiçado pelas sombras que se movem no fundo da caverna platônica e o olhar hipnotizado pelas sombras que se agitam nos retângulos luminosos dos aparelhos receptores de TV, são quinze séculos de Teorias e práticas de imagem" (Barbieri, 1996: 76).
        No pós-moderno, sob o 'dilúvio informativo' e o totalitarismo taxonômico da ciência analítica, o Eu se diminui e, finalmente, nulifica-se. O homem devora as imagens, deglute-as, como no conto descrito - pastiche do próprio sujeito que observa o mundo; o olhar passa pelo mundo, segundo Nícia Villaça (1996: 105), sem entrar em contato com ele: "passa entre as coisas, objetiva-as". Objetiva-as no sentido de objetiva de câmera - reflete não a visão tecnicista de redução do real ao real objetivo, mas do real objetivo ao real aleatório. O olhar do "Sujeito" cola-se "a pessoas e objetos, funciona como um colecionador, retira-lhes a vida, os rastros", compondo um quadro de "tristes borboletas mortas", bem distante das perspectivas modernas do flâneur-repórter que, como uma abelha, tenta apenas captar o que há de efêmero, porém doce. Dessa forma, erige-se não "a ficção do eu poderoso de uma tradição literária anterior, mas o eu sitiado e programado pela profusão de imagens que bombardeiam o indivíduo (...)Em Noll, a subjetividade caminha para a neutralização e a autodestruição". O acaso guia o caminho desse cronista pós-moderno, que flana pelas ruas desconstruidas de uma cidade hiperreal. No que Nícia Villaça chama de "microrrealismo, o personagem narrador permanece colado a percepções e sensações, assediado pelo acaso" (Villaça, 1996: 105).
        Talvez isso explique porque esse autor prima por escrever como se delirasse, numa tentativa de detonar a imaginação, como fez Huxley com o auxílio da mescalina em Portas da Percepção, no intuito de atingir uma espécie de sinestesia espaço-temporal, chegar à origem, à fonte da 'imaginação', que segue regras próprias:

 

o que mais ressaltava era a constatação de que as relações espaciais tinham perdido muito do seu valor e de que minha mente tomara contato com o mundo exterior em termos de outras dimensões que não as de espaço (...) Lugar e distância deixam de ter muito interesse. A mente elabora a compreensão das coisas em termos de intensidade de existência, profundidade de importância, relações dentro de um determinado padrão (...) o espaço ainda estava ali; mas havia perdido sua primazia. A mente se preocupava, mais do que tudo, não com medidas e lugares, e sim com a existência e com o significado (...) adquiri um descaso maior pelo tempo (...) Parecia ter o bastante (...) o relógio ... estava em outro universo. Essa minha experiência tinha sido, e ainda era, de duração indefinida, também podendo ser considerada como um perpétuo presente, criado por um apocalipse em contínua transformação, (Huxley, 1965: 9).

 

        Huxley dizia não haver mudança alguma no mudo subjetivo, nada de ícones, visões simbólicas. A profunda mudança residia no mundo objetivo, no discurso e na percepção da realidade consciente. Não havia imagens, mas a 'Imagem'. Mais próximos de nós (em tempo, nós do ofício e imagem), o próprio Noll declara não saber de "onde vem essa capacidade do ser humano de sonhar coisas que estão além do que ele consegue, caracterizando a literatura como fundamentalmente transfiguração"15. A realização da imagem ficaria emperrada pela própria linguagem que tenta expressá-la, daí a necessidade de "recapturar essa utopia (...) que é a palavra transfigurada na sua máxima potência". É "o eu esvaziado". O sujeito-narrador atravessado pela profusão de imagens, não se enriquece; antes, descaracteriza-se, fragmenta-se como a realidade múltipla e simbólica que o envolve. Por isso, o Sujeito (em Noll) retrai-se.

 

o eu como única coisa real onde impera a irrealidade (...) O mínimo estaria implicado na impossibilidade de experiência a complexidade, a violência, a velocidade do contemporâneo. (...) retração do foco narrativo (...) retomada do eu como tema, do eu mínimo (...) O protagonista não chega a ser exatamente sujeito das ações, mas, sobretudo, espectador, vítima dos acontecimentos, apanhado em armadilhas sucessivas16 (Villaça, 1996: 114).

 

        Se, como declara, "há um pouco de hiper-realismo no que" ele está fazendo, é inútil procurar um fechamento de idéia, uma moral da história: "as imagens estão entrando com vigor", como se recolhesse peças aleatórias de um (vários?) quebra-cabeças, sem o comprometimento de se fechar a figura. Faltam peças e o autor não as entrega, talvez até porque não as tenha. A obra de Noll é um 'Nó' pós-moderno: o 'Nó Górdio' da tensão entre o sujeito e o mundo, descerrado unicamente pela espada da fatalidade. O mesmo ocorre com Deleuze em sua análise do neo-realismo no cinema italiano, com de Sica e Visconti, o sujeito descaracterizado, imerso num mundo de situações 'puramente óticas' que "se distinguem essencialmente das situações sensório-motoras da imagem-ação do antigo realismo". Ocorre a impossibilidade de ação (reação) por parte do protagonista: "a personagem tornou-se uma espécie de espectador. Por mais que se mexa, corra, agite, a situação em que está extravasa, de todos os lados, suas capacidades motoras, e lhe faz ver e ouvir o que não é mais passível, em princípio, de uma resposta ou ação. Ele registra, mais que reage" (Deleuze, 1985: 9) Se em Antonioni existe a desumanização da paisagem, descaracterização das personagens e das ações, para deles só conservar a descrição física, o inventário abstrato, em Fellini, existe o rompimento das fronteiras entre o subjetivo e o objetivo na substituição da ação motora pela 'situação ótica':

 

é o cotidiano que sempre se organiza como espetáculo ambulante, e os encadeamentos sensório-motores dão lugar a uma sucessão de variedades, submetidas a suas próprias leis de passagem (...) não se sabe mais o que é imaginário ou real, físico ou mental na situação, não que sejam confundidos, mas porque não é preciso saber, e nem mesmo há lugar para a pergunta. É como se o real e o imaginário corressem um atrás do outro, se refletissem um no outro, em torno de um ponto de indiscernibilidade (Deleuze, 1985: 17).

 

        O que Noll escreve, segundo relato do próprio autor, não é biográfico, mas atesta a existência do EU e a "visão existencialista da literatura: acho que é a existência do eu - parece uma coisa mais anônima - que vai gerar o espírito daquele romance, daquele livro" (Noll, 1988). É a singular câmera do EU que acompanha a ação, mas quase como se ela não escolhesse as tomadas, as cenas, os cortes, é a inevitabilidade de um destino que não foi bem traçado, e assinala o particular intercâmbio semiótico quando confessa que uma das coisas pela qual se apaixonou foi A paixão segundo GH, "que é um pouco Antonioni no impasse da ação. É quase como não saber prosseguir", estando plenamente consciente: "assunto muito esse procedimento pessoal". É a narrativa desconstruída e a estética pós-moderna assumida pelo próprio autor como essência de sua escritura. Mais do que a consciência, é a necessidade de fazer assim - a influência forte de "Camus, o desespero com a insatisfação, o homem revoltado com a própria condição [L'Homme revolté ou L´Etranger, onde a personagem é estrangeira de si mesma?]. E existe o cinema, o cinema italiano e, principalmente, Antonioni, que fez muito a cabeça da minha geração" (Noll, 1988). É o delírio poético já referido e a excelência do contemplar extático como o olhar da criança de Baudelaire17:

 

Muitas vezes nem presto atenção no enredo. Até me encanta a ação, mas fico ligado mesmo é na imagem. Nesse sentido, tenho certa dificuldade de me concentrar na narrativa (...) Quem olha muito está atrás do êxtase e o êxtase coagula o momento (...) consagrar o instante, de coagular o instante, de ter o êxtase. A minha relação com o olhar é uma das questões básicas do que faço, do que penso, do que vivo (...) às vezes você prefere ver a viver... (Noll, 1988: 6).

 

        Entretanto, tanto o momento coagulado (paisagem e personagens), quanto o eu-biográfico (também personagem passiva) apresentam-se menos que consagrados, bem murchos, esmaecidos, ou então inexpressivos; e, talvez pelo fato de ser descrita através de um EU que não se precisa, é confuso. O filtro personalíssimo da visão é o mesmo que o da existência. É o existencialismo impreciso de um sujeito fragmentário. Em João do Rio há precisão de máscaras (ainda que imaginária, induzida, ilusória) e o foco é preciso, o detalhe é acentuadamente explicitado. Em Noll são máscaras desbotadas, faces esmaecidas, fisionomias inexpressivas, vidas desacreditadas.
        A
catada a sugestão de Baudelaire de que o moderno busca captar o efêmero, vale notar que se João do Rio tenta captar esse instantâneo de movimento, ainda é como 'corte imóvel' do movimento (fotografia), como pose singular, como momento de interesse, peculiar e representativo (na acepção de Deleuze). Já Noll, procura evidenciar a duração (pela exposição de 'cortes-móveis'). Tentemos definir a poética de suas 'Kinematografias', pois talvez seja essa a distinção 'imagética', no sentido de definição de imagem-movimento e imagem-tempo, entre Noll e João do Rio: enquanto este mostra flashes, imagens talvez estáticas, fragmentares de uma realidade que se constrói em tijolos, aquele pretende, através da exposição também de cenas ou fragmentos, embora esmaecidas, ambíguas (já apontando para esse movimento, que torna a imagem difusa, fluida), apontar para um corpo amorfo de realidade mutável, composta de momentos fluidos, incapturáveis e, por isso, representados na escrita de forma brusca, imprecisa, como fotos esmaecidas ou faltando pedaços. Segundo Deleuze (1985: 10), há uma distinção a ser feita entre movimento e reprodução do movimento, que se observa com a 'ilusão cinematográfica':

 

o movimento não se confunde com o espaço percorrido. O espaço percorrido é passado, o movimento é presente, é o ato de percorrer. O espaço percorrido é divisível...", já o movimento não o é (...) O cinema nos oferece então (...) o exemplo típico do movimento falso (...) de ilusão cinematográfica (...) Temos visões quase instantâneas da realidade que passa e, como elas são características desta realidade, basta-nos alinhá-las ao longo de um devir abstrato, uniforme, invisível, situado no fundo do aparelho do conhecimento... Percepção, intelecção, linguagem procedem em geral assim. Quer se trate de pensar o devir, ou de o exprimir ou até de o percepcionar, o que fazemos é apenas acionar uma espécie de cinematógrafo interior" (Deleuze, 1985: 10).

 

        Não se trata, portanto de "reconstituir o movimento com o espaço percorrido, isto é, somando cortes imóveis instantâneos e tempo abstrato" (1985: 10). O cinematógrafo interior, a partir da leitura de Noll, pela forma de linguagem de que se utiliza o autor, provoca a manifestação de uma intuição de movimento contínuo, explicitando o próprio movimento como personagem principal, sem referências de espaço percorrido, desprezando a percepção espacial. Distinto de João do Rio, que apresenta (concomitante à evolução cinematográfica) ainda certa dependência da exposição teatral:

 

De um lado, a câmera era fixa, o plano era, portanto espacial e formalmente imóvel; de outro, o aparelho de filmagem era confundido com o aparelho de projeção, dotado de um tempo uniforme abstrato. A evolução do cinema, a conquista de sua própria essência ou novidade se fará pela montagem, pela câmera móvel e pela emancipação da filmagem, que se separa da projeção. O plano deixará então de ser uma categoria espacial para se tornar temporal; e o corte será um corte móvel e não mais imóvel. O cinema reencontrará exatamente a imagem-movimento. (Deleuze, 1985: 11).

 

        É, portanto, conveniente estabelecer que o cinema torna-se movimento a partir do momento em que se transforma em linguagem, e mais, quando reconhecido como linguagem que codifica o mundo através de sua estética interpretativa, somente realizando-se plenamente quando manifestada na linguagem interior daquele que a lê: quando sua finalidade é provocar não o movimento em si, mas no cinematógrafo interior da linguagem mental do espectador.

 

A revolução científica moderna consistiu em referir o movimento não mais a instantes privilegiados, mas ao instante qualquer. Mesmo que o movimento fosse recomposto, ele não era mais recomposto a partir de elementos formais transcendentes (poses), mas a partir de elementos materiais imanentes (cortes) (...). Em toda parte [fala aqui da ciência] a sucessão mecânica de instantes quaisquer substituía a ordem dialética das poses: 'A ciência moderna quer se definir sobretudo pela sua aspiração de considerar o tempo uma variável independente'" (Deleuze, 1985: 13)

 

        Não há formas, mas a forma em movimento. Os instantes (foto-estáticos) passam a ser instantes quaisquer do movimento, destacados - escolhidos - pelo desejo ou pelo acaso. É uma abrupta inversão: não é mais o movimento composto de instantes, ou momentos, mas, ao contrário, os instantes são elementos puxados, extraídos artificialmente do movimento, podendo ser singulares, ordinários ou marcantes. O movimento escapa à síntese. Ele é a análise infinita. Se Randal Johnson nos diz que, diferentemente da literatura, no filme não podemos alterar a velocidade de leitura, pular páginas etc., verificamos que em Noll é como se sua escrita pretendesse aferrar-se a esse princípio cinematográfico:

 

é inclusive esta a diferença entre a dialética moderna (...) e a dialética antiga. Esta é a ordem das formas, transcendentes, que se atualizam em movimento, enquanto aquela é a produção e a confrontação dos pontos singulares imanentes ao movimento (...). Pois se a concepção antiga corresponde efetivamente à filosofia antiga que se propõe a pensar o eterno, a concepção moderna, a ciência moderna, invocam uma outra filosofia (...). O cinema não seria mais o aparelho aperfeiçoado da mais velha ilusão, mas ao contrário, o órgão da nova realidade a ser aperfeiçoado. (Deleuze, 1985: 16).

 

        O "órgão da nova realidade" permitiria o desenvolvimento, a evolução do "cinematógrafo interior". Deleuze preocupa-se com a forma 'mental' da imagem. Apóia-se no Tempo, ou Movimento, descartando, para efeito de apreciação, a espacialidade (tirando-a de sua condição preponderante). O Todo, portanto, é aproximado do conceito de Duração, como aquilo que é aberto, que dura, impossível de ser enquadrado num sistema fechado, posto que lhe cabe mudar incessantemente. Daí que "se o vivente é um todo, portanto assimilável ao todo do universo, não é tanto porque seria um microcosmo tão fechado quanto o todo supostamente o é, mas, ao contrário, é enquanto ele é aberto para um mundo, e que o mundo, o próprio universo, é o Aberto. 'Em todo o lugar onde alguma coisa vive, existe aberto em alguma parte, um registro onde o tempo se inscreve'". (Deleuze, 1985: 19).
        O que avulta em João do Rio e Noll, consideradas como obras abertas (Johnson, 1982: 16) para a transformação do mundo que descrevem é a forma como realizam essa apreensão do fato resolvido em forma: o filme verbal (simbólico) dos acontecimentos, regidos pelo signo da mudança. Em termos estéticos, é a noção de mudança de 'cortes-imóveis' para 'cortes-móveis', aproveitada dessa concepção bergsoniana aplicada ao cinema, crônicas dissolvíveis na Duração. Enquanto a apreciação de João do Rio possa ser a de fotografias de movimentos privilegiados, ou singulares (cena dos trabalhadores etc.), Noll poderia ser entendido como aquele que pretende sugerir, através do esvaziamento da linguagem, pela criação de 'situações óticas puras', a 'Duração' ou o acontecimento em aberto - a partir da exposição de cortes móveis - ou coleção de estágios, situações e lances essencialmente transitórios de um 'Todo' que é indefinido. Se, como conclui Deleuze, "não só o instante é um corte móvel do movimento, mas o movimento é um corte móvel da duração" (1985:19), podemos adaptar a equação de proporcionalidade de Deleuze para explicar (resumir) a relação entre João do Rio e Noll, em vista da evolução dos conceitos de imagem e linguagem cinematográficas:

 

Cortes Movimento   ->    movimento como Corte móvel / Duração

João do Rio   ->   João Gilberto Noll

 

        João e João privilegiam, pelo que foi visto até agora, momentos distintos da percepção das imagens-mudança, imagens-relação, imagens-volume, para além do próprio movimento (como concluem Deleuze/Bergson), consideradas as situações sociais e históricas em que estão inscritos e suas limitações estéticas de representação. Texto e filme são, ambos, obras em aberto, efetivamente dentro - e ao mesmo tempo fora - de nossa imaginação.
        N
o entanto, para além das imagens e movimentos, é no filme "Meus Caros Amigos"(Amici Miei), de Mário Monicelli, que, talvez, encontremos abrigo suficientemente amplo para dar sombra a ambos os Joões, que tanto se distanciam, como foi visto até agora, em data e estética. Esse filme conta a história de cinco amigos com afazeres diversos, mas todos perdidos num mundo não-objetivo. Em conjunto, representam o mínimo - eu - última ilha não imersa na ressaca das imagens, e, ao mesmo tempo, a diversidade das máscaras que compõem o sujeito. O enredo compreende um conjunto de situações coroadas de comicidade, lirismo e tragédias particulares, colados (unidos) pela relação interpessoal - a simples amizade. A paisagem é predominantemente urbana, mas sem registros específicos de nuanças ou detalhes da cidade - é uma cidade como outra qualquer, importando somente os lances, as cenas. Saliente-se o final, simbólico de toda a 'situação' que o filme explora. O desfecho, resumo-o, com a "Rapidez" tomada de Calvino, em um de seus "passeios...", e a economia discursiva que exigem os Tempos... visto que "o conto [a crônica ou o movimento] não perde tempo": são cinco amigos de longa data, que se divertem às custas de si mesmos e do público em geral, aproveitando-se da teatralização do convívio social e do ridículo das convenções. Assim é que, depois de inumeráveis arruaças, simulam compor um braço da Máfia, com a finalidade de enganar um aposentado que recrutam para a sua fictícia associação. Após a encenação de um assalto e de uma operação de tráfico de cocaína, despacham o pobre velho, de trem, para fora da cidade, travestido de padre, para não ser reconhecido pela polícia que, supostamente, procurava, especificamente a ele. Um ano se passa e morre um dos amigos trapalhões, em triste episódio. O aposentado ressurge, de forma imprevista no meio do cortejo fúnebre e pergunta: "Quem morreu?". Respondem-lhe: "Foi Fulano". Ante o olhar apreensivo do ludibriado, um terceiro amigo, rápido e fulminante (como convém a um improviso teatral), afirma em voz grave e cava: "Era um traidor". Então, o toque de gênio do Diretor: todos começam a rir baixinho, disfarçando os esgares com as mãos. O velho, acreditando perceber embiocados e comovidos prantos, comove-se também, mas não sem antes retirar, respeitosamente, o chapéu.
        Se a ironia é o lirismo da desilusão - segundo Paulo Barreto - e o que gera a poesia é o drama humano, pois na arte nada é a coisa em si e sempre há algo por trás - segundo Noll -, talvez o que os autores tenham de mais importante a revelar seja não o movimento, o uso do corte móvel, a libertação da linguagem, a captação do efêmero ou o desbunde da abundância de máscaras (simples elementos técnicos a serviço de um possível verbo transemiótico), mas a simples situação humana, o ensejo de uma 'Duração' indiferente e amoral a espalhar em éolos desordenados (e talvez aí o motivo do riso das personagens de Monicelli) os cacos dos quebra-cabeças da história de cada João.

 

Notas:

1.Referência ao texto de Baudelaire "O Pintor da Vida Moderna" (in "A Modernidade de Baudelaire"). Nele, o poeta nos fala da obra da obra do pintor "G." e seu êxtase em captar o efêmero e o movimento das cidades. O Homem na Multidão - breve análise do conto de Poe, em que um convalescente destaca figura interessante na turba e resolve segui-lo. Baudelaire compara o olhar desse convalescente ao da criança.

2.Urbe que se faz escrita - escrita que se faz cidade. Conf.. "A Alma Encantada das Ruas" (João do Rio, p. XI e XII).

3.Conferir "Máscaras...", em Cinematographo. João do Rio.

4.Personagem de Lima Barreto em Triste Fim de Policarpo Quaresma - violeiro, poeta e cantador.

5.BAUDELAIRE, 1998: 162) Em O Pintor da Vida Moderna encontra-se uma espécie de 'Teoria do Belo'. Talvez a curiosidade de João do Rio pelo submundo se explique através dessa dicotomia que o instiga: "O belo é constituído por um elemento eterno, invariável, cuja quantidade é excessivamente difícil determinar, e de um elemento relativo, circunstancial, que será, se quisermos, sucessiva e combinadamente, a época, a moda, a moral, a paixão. Sem esse segundo elemento, que é como o invólucro aprazível, palpitante, aperitivo do divino manjar, o primeiro elemento seria indigerível, inapreciável, não adaptado à natureza humana" (1998).

6.Conf. "Quando o brasileiro descobrirá o Brasil", em Cinematographo. João do Rio.

7.Admitida a precedência da literatura sobre outras formas artísticas debutantes, considere-se que ainda se verifica resistência e desconfiança ante a literatura-jornalística e a própria crônica como arte literária. Embora Eduardo Portella, levemente afeito a uma perspectiva interdisciplinar (memorialismo, correspondência), considere que os "livros de crônica (...) constituem uma obra de arte (...)", entendendo-os como úteis "para o enriquecimento do estudo literário", pese-se o eco de Antonio Cândido, assumida a linha mais ortodoxa, a considerá-la "um gênero menor" (apud RESENDE, 1994: p.36) e a postura de Machado de Assis, a considerar a crônica "um confeito literário sem horizontes vastos (...) uma frutinha de nosso tempo", que "fareja todas as coisas miúdas e grandes".

8.Ver conceito de 'Rapidez', em ensaio homônimo (CALVINO: 49): "A técnica de narração oral na tradição popular obedece a critérios de funcionalidade: negligencia os detalhes inúteis, mas insiste nas repetições". Considere-se a possibilidade por poarte de João do Rio, de instrumentalização (com arte e de sobra) dessa perspectiva.

9.In "Cinematógrafo das Letras" de Flora Süssekind, (p. 108).

10.Referência ao conto "A Nova Escultura", do livro GOG, de Giovanni Papini, onde um excêntrico escultor tenta conceber a mais efêmera e transitória das formas de realização artística. Segundo a personagem, "a única solução plástica possível consiste em passar da imobilidade ao efêmero". (PAPINNI: 84).

11.Prefácio de Cinematógrafo.

12.Idem

13.in "Cinematógrafo de Letras"- Flora Süssekind (p. 137)

14.Exemplo de aplicações intersemióticas: Rubem Fonseca que adota em sua produção textual "invenções da sintaxe cinematográfica". (BARBIERI, 1996: 65). Atitude explicitada em "O selvagem da Ópera" (1994), quando ele mesmo diz "Isto é um filme, ou melhor, o texto de um filme..." Assinala a presença da linguagem cinematográfica desde os primeiros contos de "Os prisioneiros"; obsessão que "consiste não só na aclimatação ao meio literário de imagens visuais enquadradas a partir de ângulos escolhidos (...) mas também no freqüente uso do corte e montagem" (Barbieri, 1996: 66) . Como no conto "O Olhar" - onde imagens fortes (o homem eviscerando o coelho na banheira) são acompanhadas por um 'fundo musical' de música erudita (polieidolia e polifonia). Idéia que encontra parelha em "Laranja Mecânica", realização de Stanley Kubrick, onde há uma cena de sexo do protagonista com duas mulheres (feita em câmera rápida) ao som de uma sinfonia de Beethoven

15.Todas as declarações do autor são retiradas de entrevista cedida a Márcia Hoppe Navarro e Tabajara (1988)

16.Em Hotel Atlântico, por exemplo, "a economia de recursos utilizada pelo narrador na apresentação do texto prenuncia a mutilação da narrativa em todos os níveis. É a falta que articula o universo narrado (...) pela gratuidade com que se sucedem as cenas. (..) Se na literatura de simulacro o sentido era suspenso devido a várias versões de um mesmo fato, aqui se dá o contrário: economia de informações, vazios de significação." (VILLLAÇA, 1996: 106)

17.Como se ele possuísse o espírito infantil que Baudelaire destaca em G., em O Pintor da Vida Moderna: "A criança vê tudo como novidade, ela está sempre inebriada (...). O homem de gênio tem nervos sólidos; na criança, eles são fracos. Naquele, a razão ganhou um lugar considerável; nesta, a sensibilidade ocupa quase todo o seu ser (...). É à curiosidade profunda e alegre que se deve atribuir o olhar fixo e animalmente estático das crianças diante do novo, seja o que for, rosto ou paisagem, luz, brilhos, cores, tecidos cintilantes, fascínio da beleza realçada pelo traje (...) considere-o também como um homem criança, como um homem dominado a cada minuto pelo gênio da infância, ou seja, um gênio para o qual nenhum aspecto da vida é indiferente.". (BAUDELAIRE, O pintor da vida Moderna: 168-169).



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